sexta-feira, 20 de julho de 2007

João e suas ilhas e pontes (carta à edpopsaude)

Sempre vi nesta rede um lugar para uma visão diferenciada do que é aprender, mais difusa e holística, mais atenta ao acontecimento do saber, seus diagramas de realidade e sutilezas. Até por isso, todas as minhas contribuições são assim meio estrangeiras, às vezes, reconheço, até demais. No entanto, apesar delas fazerem parte da minha saúde e da minha doença pessoais, de alguma forma, pertencem também a este coletivo. É que tem certas coisas na vida que, para serem vistas, precisam de olhos vesgos, imprecisos... o que importa em aprender a olhar com o outro.

Ontem, meu filho envesgou meu olhar, e amanheceu-me hoje uma visão que gostaria de partilhar com vocês...

João estava eufórico com a chegada da mãe de Salvador.... Corria, ria, dava piruetas e falava incessantemente. Uma alegria excessiva, que o vizinho de baixo deve ter percebido, e que o fazia literalmente desconhecer os meus constantes pedidos para não pular, "porque o Gustavo (filho do vizinho de baixo) já tinha ido dormir". Aprendizado ético difícil para um João que sentia uma alegria maior que o mundo. Depois das tentativas de conversa, ralhei com ele algumas vezes, pois ser criança, não muda o horário de despertar do vizinho no dia seguinte. Aliás, que aprendizado difícil é a ética. "Todo homem é uma ilha", disse Drummond em seu Fazedor de Homens, enquanto que Nietzsche gritava: "eu sou muitos". Os dilemas humanos são assim como estas frases, parecem ser feitos de contrários (indivíduo/coletivo, eu/outro, finito/infinito), mas na vida eles são dimensões mistas da mesma realidade, que se separam em nós, quando nascemos, e que passamos a vida inteira tentando juntá-los.

João não sabe dessas coisas... de Drummond e de Nietzsche... mas sua agitação subversiva tinha estas duas dimensões: alegria de ilha, amor de ponte. Para uma criança, como ele, ainda não educada para a percepção desta divisão da natureza humana, a inocência é possível... e da forma mais legítima. João enxerga os conflitos quando os sente... não é egoísta... é sincero com o viver... ainda não aprendeu a disfarçar e dissimular os conflitos. A ética nunca é pura, ela importa sempre uma dissimulação, nem que seja para sermos aceitos em alguns grupos... João ainda não separou o seu ser da sua imagem, tem a guerra humana incorporada ao seu ser, mas a sente inteira, assim como ama inteiro.

Rita trouxe-lhe, dentre outros presentinhos, uma fitinha do Senhor do Bonfim. Colocou em seu braço, e falou que fizesse um desejo, que pensasse uma coisa que queria muito. Ele olhou no vazio reflexivamente, e disparou: "Já sei!!! Eu quero continuar morando na minha casinha, e continuar brincando com meus brinquedinhos."

Que grandeza a do João... para quem viver é muito simples... assim como amar as coisas e as pessoas... Imediatamente lembrei do Paulinho da Viola: "as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender..."

Que bom que João está no mundo... e a vida me deu a oportunidade de estar aprendendo junto com ele...

E digo de novo aquele Belchior:
"João, a felicidade é uma arma quente..."

E completo:
"a do vizinho também..." rsrsrs

Riso,
Sérgio

Um comentário:

Unknown disse...

Boa Sérgio! Excelente texto...