quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O pensamento como prática de resistência


Nas turmas de ensino médio dos Colégios estaduais em que dou aula, jamais entro de sola, no início do ano, com os pensadores e suas reflexões. A Filosofia é um alimento que tende a ser mais apreciado quando precedido por uma boa entrada, para depertar o apetite. Neste couvert, ponho uma pitada de História da Grécia Antiga, para construir a idéia de que a Filosofia, desde seu nascimento, tem os braços dados com a liberdade, através da formação da Sociedade Política democrática (Pólis), através da descoberta do poder do indivíduo pela palavra na Ágora. Cidadania, Política, Ética, Religião (mitologia), Participação, Autonomia são ingredientes poderosos que possibilitam uma contrapartida interessantíssima com os tempos atuais. Aliado a isso, as contradições da escravidão que persiste na Pólis e que, estranhamente sustenta o novo modelo político "livre".

Depois saio do social, do político, do cultural, ou seja, do macro, para iniciar um contato mas íntimo e pessoal com o pensamento filosófico. O que é o Senso Comum? Por que ele é expressão de um controle que se faz sobre nós? Por que ele engessa o nosso pensamento e a nossa ação? Como ultrapassar esse obstáculo? A Filosofia nesse caminho... O que é Senso Crítico? Aprendendo com a criança a questionar... E vai por aí...

Neste início, tento trabalhar a Filosofia como conteúdo subliminar, que perpassa músicas, poesias, filmes, tiras de quadrinhos (a Mafalda é ótima...), textos etc. Inclusive, nessa parte de "aprendendo com a criança a questionar", recentemente, usei aquela música da Paula Toler, cantada pela Adriana Calcanhoto: "Oito Anos", que é toda feita de perguntas feitas pelo filho dela. Poxa, como rendeu... Nesse dia saí de alma lavada!

Resolvi passar para eles também "O Show de Truman" para motivar um trabalho sobre o Senso Comum e os limites que ele coloca ao nosso viver. Como é preciso colocá-los para escrever, pedi um trabalho de, no mínimo 20 linhas, que relacionasse o conteúdo com o filme.

Por que estou contando tudo isso pra vocês? Porque, na última semana, li os trabalhos, e um deles tirou meu chão. Vocês já devem ter percebido que eu sou meio chorão, né? Pois é, nesse dia justifiquei minha fama... Acho que tem textos que a gente escreve com tanta força de alma, que eles viram como que páginas do nosso espírito. Senti uma alegria enorme quando li o texto-página-do-espírito da aluna Márcia Andréia, com a certeza de que ali ela tinha se posto de maneira devassada e corajosa. A Filosofia, no meu entender, serve pra isso, pra potencializar espíritos. Não é, nem nunca foi, um mero conteúdo. Ela enseja um pensamento que tem a resistência como prática. Como dizia Kant, em uma das poucas passagens em que fecho com ele... rsrsrs: "Não se ensina Filosofia, ensina-se a filosofar..."

Essa aluna então foi uma grata surpresa. Sempre assistia as aulas sem participar com falas, e sempre tinha um olhar de sobranselhas franzidas, como de quem está tendo dificuldades. E, de repente, mostra-se uma radiante pensadora, inquieta e forte. Tem como não se emocionar? Pois é, ponho abaixo, para vocês se emocionarem junto comigo com este texto que pedi autorização a ela para reproduzir aqui.

"Sou paciente da contemplação diária.
Olhos que olham, mas não observam.
Ouvidos que ouvem, mas não entendem.
Boca falada, porém não questionada.
Não é fácil viver num mundo onde as pessoas são manipuladas.
Truman sou, pois somos
manipulados feito fantoches,
manipulados pelo consumismo,
manipulados pela propaganda.
Minha vida manipulada?
Que vida, se não a tenho, se não posso contemplá-la?
Vida!
Guiada
Observada
Questionada
Assistida por todos, só não por mim, atriz principal deste teatro central.
Por que não acrescentar mais algumas palavras? O quê, Por que e Como. Questionar sim.
O que dizer quando chega o tempo da amizade?
Falamos, mas não sabemos com quem.
Não enxergamos a verdade nos olhos de alguém.
Talvez tenhamos medo de brigar, lutar, acordar do sono profundo.
Talvez tenhamos medo do desconhecido, medo de dar o grito de liberdade, da independência, o grito da fúria, o grito insano, o grito da liberdade!
Enfrentar o pior inimigo, o obstáculo maior, o mar.
Enfrentar a sua fúria é descobrir-me.
Enfrentar este fantasma adormecido que tudo levou, é uma briga diária.
Este mar que divide o sonho, a realidade, atravessá-lo é alçar vôo, vôo incerto, porém livre, mas, do outro lado, a realidade!
Truman
Vida escravizada sim,
Pensamentos NÃO!"

Quem sabe a Márcia Andréia não nos motive a ver o pensamento para além do binômio teoria/prática? Ou mais, quem sabe ele não nos mostre um binômio mais fundamental e inclusivo, que é o de pensamento/vida? No meu entender, este duplo não perfaz, nem uma oposição, nem uma contrariedade, mas uma complementaridade. Está em tudo o que existe, ora mais forte, ora menos. Músicas, poesias, dissertações, equações matemáticas, cinema, discursos, política, utopias... são ocasiões para essa união entre pensar e viver. Não existem hierarquias entre esses modos, nenhum deles diz mais o Ser que os outros. Talvez a diferença esteja mais na força com que se dará a liga entre pensamento e vida, do que propriamente no modo que se utilize para isso.

Riso,
Sérgio

Nenhum comentário: