terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Uma questão ética

Ao amigo Eduardo Stotz,

É caro camarada,
"viver é perigoso", já dizia o velho poetinha...

Toda tentativa de compreender a vida é sempre "um grito num deserto devassado de sol", uma agressão a própria finitude. Essas coisas que pretendem dizer tudo, acabam sempre, como que numa mágica reversão do absurdo de viver, dizendo quase nada. A ética é muito assim... Mas só é possível sentir-se vivo inserindo-se nestes absurdos.

Há verdade em Drummond quando, em seu Fazedor de Homens, diz: "Todo homem é uma ilha...", porque todo homem só sente o mundo a partir das suas sensibilidades, de sua pele, de seu espírito. Suas dores e alegrias são sempre só suas, mas somente depois de serem dores e alegrias do mundo inteiro. E aí Nietzsche grita: "Eu sou muitos!", ou então é o nosso Guimarães, que diz "sou Viramundo".

Até, por isso, e eu tenho certeza de que você concorda, política não é só o que se faz nos gabinetes de Brasília. A política, antes de ser palaciana, é humana. Ora é desejo de mundo, ora de Eu; ora encontro, ora afastamento. Como diria Paulo Freire, ora inclusiva, ora bancária. Quando falo de Ética para meus alunos tento mostrar-lhes as coisas assim, como um princípio de relação com o outro e não como uma regra exterior a ser obedecida, o que seria a moral. Quando me relaciono com o outro, e este outro pode ser uma pessoa ou uma sociedade inteira, contruo muros ou pontes? Esta é a pergunta ética fundamental... Mas equilibrar-se na corda que vai do Eu ao Outro não é simples. Como na música do Gonzaguinha: "Somos nós os grandes artistas desta vida. Nós, os equilibristas...".

E aí eu concordo com você que o nosso contemporâneo modo de vida, que você muito corretamente chama de sociedade do espetáculo, é um projeto do umbigo. Do silicone à corrupção, tudo é o altar do EU. E então nossa sociedade é uma sociedade de miseráveis e deprimidos, de quem adoece pela falta e de quem adoece por excesso. Brinco com os meus alunos que a sociedade é como uma rede de pesca, um arranjo de linhas e pontos, da qual nós somos os pontos, e as linhas, as relações entre nós. Este arranjo é tão integrado, que sequer podemos dizer que os pontos e as linhas são diferentes um do outro. Na verdade, é o enroscar das linhas que produz os pontos. Então, quando puxamos um ponto, toda a rede sente o puxão. Quando se enfraquece a linha entre os pontos, toda a rede se enfraquece, rasga, e não traz fartura. Mas quando as linhas são fortes, os pontos também o são, e, como diz o Caymmi: "é só jogar a rede e puxar".

Esta fábula sem bicho tem sido muito importante para, primeiramente, mostrar a Ética como alguma coisa que nos compõe necessariamente. Ela não está fora de nós só esperando para nos julgar, está por dentro. Até quando somos individualistas, usamos uma ética, a do afastamento, a da exclusão. Um segundo ponto importante é ajudar a perceber que corrupção é toda forma de corrosão da linha que me estente ao outro. Então, por exemplo, eu também sou corrupto quando não limpo o cocozinho do meu cachorro no passeio matinal. Pode até parecer que o problema é de quem for pisar, mas, na realidade, o primeiro a se enfraquecer sou eu, porque deterioro as relações que me constituem. Uma espécie de pisão no próprio pé... ou na própria merda... rs.

Este jogo entre o pequeno e o grande, entre a ética e a política, entre a minha ação e a globalização, querendo ou não, é jogado. Pensá-lo é que é o dilema. O problema, no meu entender, é que acabamos sempre entendendo a ética como uma obrigação, e a política, como uma construção, quando, na realidade, ambos são uma construção integrada e infinita, assim como na fábula da rede de pescar.

Há uma forte concepção política na metafísica de alguns gregos, como por exemplo, Heráclito. Segundo ele, o cosmo, como organização do caos, se dá pela harmonia construída pela guerra entre os contrários. É muito conhecida a sua frase: "somente na mudança as coisas encontram repouso". Quando falei da miséria humana, e de que não a via com pessimismos, foi neste sentido, de entendê-la como unidade fundamental da vida. Não há harmonia sem guerra. Pensemos, por exemplo, numa tela de Van Gogh. Aquela beleza é uma paz cheia de guerras intestinas, entre cores, idéias, formas.

Assim como os pontos de uma rede só se fazem pela tensão do enroscar das linhas, e a própria rede é o resultado destas tensões, a política, como dimensão macro, é o resultado de tensões menores e que lhe são fundamentais. É preciso abrir esta caixa preta, este veu de pureza hipócrita que se joga sobre a ética, para entendê-la mais como humana e menos como perfeição a ser atingida. Enxergá-la num samba do Zeca pagodinho, no jargão de um vendedor ambulante, nos conflitos dos quais sou parte etc. As formas de relação e corrupção se concretizam de forma sempre diversa, mas são sempre resultado de se ter, ou não, o outro como projeto. Este é o ponto.

Pode-se até afirmar, com alguma segurança, que é também uma forma de pragmatismo a sedução que se tem por transformar as coisas diretamente pela intervenção macro, entendendo-se a política apenas de forma institucional. Talvez isto advenha daquela idéia citada anteriormente de que a política é uma construção, e a ética uma obrigação. Como se a primeira estivesse aberta à transformação, e a segunda, fechada.

Esta sedução, na realidade, fragiliza o agir político, pois o pressupõe como um fim, usurpado de meios. E não teria sido exatamente esta a fragilidade demonstrada pela esquerda brasileira na sua recente chegada ao governo? Pois é....

Riso,
Sérgio

Um comentário:

Unknown disse...

Seria nessa "arapuca" ética na qual se prende até hoje o Eduardo Suplicy, assim como segmentos expressivos do PT, que se sentem tal como os membros do STF ao julgar a denuncia do "mensalão", ou seja com uma faca (a da opinião publicada, dita ética) no pescoço? Abraços, Seu primo!