segunda-feira, 18 de abril de 2005

Eduardo e seu diário-vagalume

A umas duas semanas li uma poesia do Manoel de Barros, que muito bem conta sobre uma maneira de ler o mundo pela qual um amigo, Eduardo Stotz, deliciou-me com um diário de viagem sobre visita sua ao Cariri. Recorto então o retalho que mais expressa essa relação. Diz assim o Manoel:

"Ao poeta faz bem desexplicar,
Assim como escurecer acende os vagalumes."

Contar e relatar são diferentes maneiras de se empregar intensidade à escrita. E como escrever é sempre viver, em verdade, são maneiras diferentes de se empregar intensidade à vida.

Relatar pressupõe uma linguagem aferida, que recorta hierarquicamente dos acontecimentos o que neles elege-se como mais relevante. Uma precisão objetiva que cega o olhar-do-em-torno, pela intensidade de luz que projeta sobre um objeto determinado. Os cineastas sabem disso. Muita luz às vezes cega os contornos. Num relatório, elege-se os fatos como uma diminuição do acontecimento, que é sempre muito maior. Acuidade científica que mais empobrece do que enrica, que mais perde do que acha. Praça da Bastilha, 1789. O que mais importa: a queda do regime monárquico ou o pássaro que faz seu ninho na torre do Castelo de Luis XIV? Imagens, olhares...

Já contar não exige aferições no olhar, seleções no acontecimento. Quem conta encanta-se com as grandezas do ínfimo, com os cantos matutinos dos pássaros, com o vôo da coruja, com o calor envolvente das águas, com conhecimentos desconhecidos, enfim, com o que há de mais intestino em viver. Contar é uma soma, não uma subtração; é uma sobreposição de imagens, não, uma justaposição de fatos. É preciso diminuir a luz para acender os vagalumes, e iluminar as insignificanças, as ignoranças. Contando, elimina-se as regências e os reis da linguagem, inventa-se uma nova relação das coisas consigo, e, por isso, um novo si.

Eduardo não relatou, contou, mostrando que o cuidado com a vida, começa com o cuidado com o olhar.

Riso,
Sérgio.

Um comentário:

Patrícia Souza Lima disse...

Encantei-me com os dois. Estava a procura do Eduardo Stotz, mas conhecer os textos e a produção de Sergio foi um encontro não-esperado. Parabéns e encontre por aqui uma historiadora que comungou com você literariamente.
Não sei o que aconteceu com o EC2, de foi problema da educação científica ou da cidadania?! ;-) Mas estou aqui aguardando novidades nesse espaço também.
Grande abraço, Patrícia Souza Lima