domingo, 8 de maio de 2005

JOÃO BATISTA E AS PALAVRAS - Mais um causo escolar

Na 6ª passada, 2ª e ontem, retomei os trabalhos junto com minhas turmas. É agradável perceber como, para a maioria dos alunos, a escola faz falta. Mesmo com aquele clima de ironia marota de "professor, o sr. nem imagina a saudade que eu tava de você", dá pra perceber, pela histeria quase incontrolável da galera... rs, que há de fato uma satistafação no retorno.

Na retomada, falei para eles que seria interessante fazermos uma aula de resumo do que já vimos para continuarmos a caminhar com segurança. Até um engraçadinho, falou: "É muito bom mesmo, professor, por que eu não tive tempo nenhum pra estudar Filosofia nas férias, sabe...?" E eu: "Eu imagino como foram difíceis pra você esses dias...". E aí todo mundo ri, e pra voltar a um mínimo de concentração é um parto... rs. Turma de Ensino Médio é isso aí... é muito hormônio pra pouco juízo... rs. Mas com algum custo consegue-se.

Lembrei-os que este primeiro semestre nos serviu de etapa de reconhecimento da Filosofia. Uma boa "entrada", um couvert, para abrir o apetite. Vimos a Filosofia sob uma perspectiva Macro, nascendo na Grécia, e nos perguntamos porque era exatamente a Sociedade Política Democrática o seu ambiente. Lembrei que a Filosofia nascia de braços dados com a Liberdade, e com todas as responsabilidades que passa a ter quem é livre. "A Liberdade não se ganha, se conquista e se exerce". E os gregos precisavam agora construir a sua própria sociedade. A Ágora como espaço de construção, e a participação popular como essência da Pólis. Perguntei a eles se eles eram políticos: " Ô prof., eu sô honesto...". Riso abaixo e mais uns três minutos até voltar... Falei para eles então que, se isso fosse perguntado a um grego, ele também riria, mas por um motivo diferente. Para ele, seria como se eu tivesse perguntando o óbvio, algo como "qual é a cor do cavalo branco de Napoleão". Isto porque, na Grécia, não havia eleição de ninguém para representar ninguém. A representação era um direito e um dever de cada cidadão grego. Direito, porque todos eram iguais perante o decidido, e dever, porque, como não exercer o seu poder de homem livre numa sociedade política? A palavra passa a ser um instrumento de poder, e o grego sabia disso. Mas qualquer instrumento, como por exemplo, uma faca, pode servir tanto para fazer um alimento, quanto para matar uma pessoa. E a Filosofia surge então graças à liberdade, mas também com a missão de estabelecer limites e critérios para os discursos, mas sempre pela palavra...

E por aí foi... lembrei a eles também que num 2º momento tivemos um contato mais íntimo com a Filosofia, e que, neste momento, perguntamo-nos sobre as coisas do nosso cotidiano que nos impedem de refletir, de pensar autonomamente, e de, por isso, exercer, como os gregos, a liberdade pelo pensar. Lembrei-os então do Senso Comum e do Senso Crítico... etc.

Só que tem um sujeito chamado João Batista, com uma expressão bem significativa (meio parecido com o Zé Ramalho), que, assim como o Zé, tem umas esquisitices bem interessantes. Não tem muita relação com o resto da turma, sempre senta na primeira carteira, e fica a aula inteira olhando para a mesa ou manuseando, com olhos fixos, a sua caneta. Sempre que falei com ele, pude percebê-lo como uma pessoa amável, mas com bastante dificuldade de se expressar falando ou escrevendo: possível razão da timidez. É casado, tem dois filhos, trabalha e suas notas não são lá muito boas. Ele foi inclusive citado no Conselho de Classe, por uma professora muito incomodada com o seu jeito. Dizia: "Esse cara é muito esquisito, não fala com ninguém, assiste a aula com a cabeça baixa... e o pior é que vai acabar passando..." Quanta ignorância, quanto ressentimento, quanta vontade de julgar... Sem dúvida ela nem imagina que as diferenças mais acentuadas, às vezes, são sinais de genialidade. Tentei amenizar: "mas é o jeito dele... de fato tem dificuldades, mas não o acho desinteressado... me faz até algumas perguntas..." Mas não adiantou muito e ele foi execrado no CoC.

Ontem, depois da aula, ele chegou-me, e tivemos o seguinte diálogo:
- Esse negócio aí da palavra é interessante mesmo, né professor? Uma palavra pode dizer muitas coisas, né?
- É isso aí, João, em Filosofia, a gente diz que uma palavra tem vários sentidos...
- A gente pode falar de muitas maneiras, né?
- João, isso que você falou é muito bonito. Tem um filósofo chamado Aristóteles que disse que "o Ser se diz de várias maneiras...". E é exatamente o que você disse... - e festejei: "João, você tá filosofando, homem!"

Ele riu para mim um riso contido, quase trêmulo, e eu emendei:
-É que nem poesia, João... muitos sentidos, muitas maneiras...

E aí de repente seus olhos brilharam, tornando claro que ele havia entendido o tamanho da coisa que eu havia lhe falado, e disse ainda pensando, meio hipnotizado:
-É.... a poesia...

Já me afastando, propus:
- Faz uma, João...

E obtive um riso, ainda mais contido, como resposta.

Riso,
Sérgio.

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