quarta-feira, 4 de abril de 2007

Sobre o saber popular e a música das melancias

O casamento faz com que descubramos gostos que antes não cultivávamos. No meu caso, um deles foi exatamente o de ir ao supermercado. Fico lembrando quando Ernande disse: "esse cara é urbano demais..."rs. Acho que ele tem razão, e talvez só essa dimensão do meu ser explique um gosto assim tão despropositado.

A maioria das pessoas não gosta de supermercados e eu até compreendo suas razões. Tem uns doidos que andam com os carrinhos em altíssima velocidade, que são impacientes com velhinhas que param os seus carros no meio do caminho pra procurar a data de validade da margarina. Mas há também as velhinhas impacientes que correm obstinadas para alcançar as promocões-relâmpago, e que neste caminho demonstram uma agilidade superior a de muitos marmanjos malhadões. Ao som da voz do apresentador de ofertas, vão elas com olhos em riste em busca de suas economias. Às vezes não são mais que vinte centavos, mas a determinação é de quem vai pegar um prêmio de loteria. Aliás, os apresentadores são um capítulo à parte. Fazem aquela voz estilizada, meio Sílvio Santos, meio locutor de Bingo, tão melada que deve incomodar aos diabéticos... rs.

Existe coisa mais urbana do que o supermercado? Ele opera uma verdadeira distanciação entre a natureza e o ser humano. Até os legumes e as carnes agora tem marca. Parece que não são feitos pela natureza, pela terra, mas por empresas, a ponto de o próprio ser humano desconfiar de sua naturalidade. Taí um dos aspectos que constróem esta verdadeira anomalia humana que é o sujeito urbano. As grandes cidades afiam dentes de concreto com os quais trituram a naturalidade humana. Somos um anacronismo profundo entre a natureza e a humanidade, pois tornamos estas dimensões rivais na composição do nosso ser. Entre a marca e o conteúdo, entre a doença e a saúde, entre a necessidade e a vontade, vamos nós meio perdidos em multidões, meio solitários em ônibus lotados.

Mas voltemos daonde ainda não saímos: o supermercado... Porque afinal eu gostaria deste ambiente? Ora, é simples, porque, como atestou o Ernande, eu sou urbano... embora tente obstinadamente construir para mim um pouco de sanidade em meio a todo esse anacronismo. Gosto de ficar olhando as pessoas. Gente é um negócio que me interessa mais do que maionese, e os supermercados estão sempre cheios de gente.

Quando olho os "produtos", viro de todos os lados para ver se está em bom estado, leio os ingredientes, vejo os prazos de validade e, finalmente, faço uma avaliação qualidade-preço. Minha mulher fica enlouquecida, poque ela, como qualquer pessoa normal, quer entrar e demorar o menor tempo possível fazendo compras. Combinamos então, desde o início do casamento, que supermercado seria uma função minha e só minha, de mais nínguém e sem pressa...

Seria capaz de escrever um manual de sobrevivência em supermercados. Por exemplo: nunca vá às compras com fome, para não comprar com a vontade, mas de acordo com a necessidade; as batatas melhores estão sempre na parte de cima da pilha, não só porque foram as últimas a serem colocadas, portanto mais frescas, mas também porque a maioria do público dos supermercados é composto de mulheres, que por serem geralmente mais baixas que os homens, não alcançam lá em cima. Ou seja, elas são melhores escolhedoras de alimentos, mas nós homens somos excelentes alpinistas... rs. Como diria o rapaz, excelente ator, da trupe que se apresentou no encerramento do encontro: "uma questão de gênero..." rsrs.

Tá bom... eu concordo, e até me envergonho um pouco, só um pouquinho... de que estas coisas são como que estratégias de guerra, comparáveis as de sobrevivência na selva, selva de pedra... Mas, como diz Caetano na frase final de O Estrangeiro, "i've given up all attempts at perfection" (eu tive que abandonar todas as minhas pretensões de perfeição... rs). Nestes momentos surge com força total a necessidade da dimensão ética para as relações humanas: o limite consciente que se contrapõe á guerra inconsciente. Mas este limite é muito mais profundo do que a escolha de querê-lo, ou não, usar. Ele habita a profundeza dos nossos costumes sociais e culturais, expremendo nossos olhares e quereres. Só é possível olhar e querer através dos limites éticos. A verdade da existência está no olhar possível, e não no objeto olhado. Entre a experiência e a consciência há o vão humano, com suas construções éticas e políticas, a enfilhar o destino. Por esse entre, o homem está aberto ao infinito das suas relações, embora só consiga construir algum sentido para si na finitude da consciência. Como "bêbados equilibristas", vamos nós por aí, na árdua luta de erguermos a humanidade como um projeto possível.

E foi caminhando por entre legumes e frutas que dei de frente com as melancias. Lembrei de meu filho, João, que é por elas enlouquecido. Certa vez, abri a geladeira para pegar alguma coisa para ele, que logo alertou: "Papai tem que comprar melancia...". E eu, meio sem graça: "é mesmo...". Ao contrário do pai, que tem neste ponto aprendido muito com ele, João é adorador de frutas. Almoça rápido para ir logo à sobremesa. Aí é um caqui, um cacho de uvas, um pedaço de melancia e vai indo... Costume bom que provavelmente vem dos avôs. Meu pai, de vez em quando, resolvia fazer dietas, e parava de jantar. Em compensação, comia 2 mamões, 5 laranjas, 3 figos e 1 maça. Brincava com ele: "Pai, acho melhor você voltar a jantar... rs". Meu sogro, por sua vez, se fez o responsável por comprar as frutas para o neto. Foi para ele inclusive que João disse sua primeira frase completa. "Vovô, caqui cabô". Foi uma choradeira danada... rsrs e, desde então, não sei onde ele arruma, mas, até fora de época, tem caqui lá em casa.

Busquei algum pedaço já cortado, mas, os que haviam, já estavam passados, meio esfarelados... Pude notar então um senhor ao meu lado, batendo com pequenos socos nas melancias, como se as estivesse escolhendo. Percebi que a chave para a seleção da boa melancia estava no tipo de som que vinha de lá de dentro. Ele aproximava os ouvidos da fruta, com o objetivo de filtrar os ruídos nervosos do supermercado. Pensei comigo: "Nunca soube como escolher melancia... vou ficar de ouvido espichado para ver se aprendo...". E ele batia em uma, batia em outra, e nada de eu perceber a diferença... De repente, chamou o rapaz do supermercado e disse, "Corta essa aqui pra mim, menino!". Falei baixinho: "Ah... essa eu quero ver...". Fiquei ao lado, curiosíssimo. O rapaz pegou o facão e cortou. A melancia estava maravilhosa... vermelinha, madurinha, mas sem estar passada... Eu, criatura urbana, sem nenhum traquejo com esta relação empírica com os alimentos, fiquei meio abobado. Tão abobado que perdi a outra metade para uma velhinha astuta que, passando a minha frente, logo a pegou... Pensei comigo, sempre elas, as concorrentes... rsrsrs.

Antes que ele se virasse, interpelei-o: "Ô senhor... por favor, o senhor pode me dizer como fez para escolher a melancia? Eu sempre escolho meio passada...". Ele me fitou com um olhar levemente risonho, como se docemente caçoasse da minha urbana ignorância, e disse aproximando o ouvido das melancias: "Ela tem que fazer um barulho firme. Se for meio oco é porque ela tá esfarelada por dentro. Ó escuta só?" E batia: "Toc-toc-toc, ó essa tá ruim...". "Toc-toc-toc, essa também". E de repente uma fez: "Tum-tum-tum, ó essa tá boa, ouve só, chega até a vibrar..." E era verdade mesmo, fazia como que um diapazão dentro da melancia. "Pode cortar essa aí...". E sem se despedir, ou sequer aguardar o agradecimento, ele virou as costas e foi embora. Chamei o funcionário do supermercado e lhe pedi que a cortasse. Não deu outra... Que melancia bonita! Pensei comigo: "João vai se esbaldar".

Fiquei depois refletindo sobre essa experiência, e sobre toda a nossa crença na vitalidade do saber popular. O senso comum é uma potência formadora de saberes e hábitos práticos. O que quer dizer que esses saberes têm como finalidade potencializar uma existência, torná-la mais forte frente às relações necessárias à vida. Desde escolher uma suculenta melancia, extraindo dela uma musicalidade que não é mais dela, mas humana, até os mais excludentes preconceitos cotidianos, que usamos de forma facista no processo de auto-identificação com grupos dominantes, tudo é expressão do senso comum. A Filosofia e as ciências em geral, no meu entender, têm esse erro grave: o de não entender que a forma mais estéril de relação com as potências é o julgamento. Dizer que o senso comum não presta é inócuo, pois ele, sorrateiro que é, estará sempre nos atravessando as entranhas do espírito e se concretizando nos nossos mundos cotidianos. Além disso, é também desconhecer a música das melancias, o seu diapazão natural, para saboreá-las depois... antes das bactérias.

Um comentário:

... disse...

Oi Maninho...
Tô aqui, pela primeira vez no seu blog!!Como sempre palavras bonitas em pensamentos inteligentes...
Bem, mas quem te viu e quem te vê...se há algum tempo atrás, nem na vassoura vc sabia pegar para varrer o chão...a Rita realmente te faz muito bem!..rsrs..e o João tb!..
beijos..Vou continuar aqui, lendo os outros textos!..