sexta-feira, 16 de março de 2007

Filosofia, espiritualidade e emancipação - mais um "causo" escolar...

Ontem dei uma aula que adoro dar. Eu a chamo de "Do Ponto de Vista á Perspectiva". Sempre busco modificar as aulas de um ano para o outro, até para não perder a graça que o processo pedagógico precisa ter para mim. Mas com esta tenho um carinho especial, com certeza pelo resultado que ela traz com os alunos, mas também porque a idéia de fazê-la me veio num momento de ausência de caminhos. Conto-lhes este conto...

Há três anos atrás, com a interrupção do mestrado, todo o meu contato com a Filosofia ficou por conta das aulas que se iniciavam no Magistério Estadual. O começo foi de um desafio que fazia as aulas de Licenciatura parecerem totalmente estéreis. De repente, sem sequer tempo para respirar, estava eu no meio do Complexo do Alemão (uma das maiores favelas do RJ), dando aula de Filosofia para um alunado com uma lascizante condição de vida, e sem saber muito bem por onde começar. A fragilidade da Escola como instituição de ensino aliada às múltiplas carências dos alunos, fazia-me experimentar uma sensação de solidão nunca antes sentida. Nas primeiras semanas, cheguei a emagrecer seis quilos, fato totalmente inusitado para o glutão que sempre fui... rs. A impressão que eu tinha era de estar na "Caverna" do Platão. Alguns alunos beiravam o semi-analfabetismo, em pleno Ensino Médio, e desafiavam-me a criar metodologias de trabalho que não excluíssem ninguém da possibilidade do fértil contato com a Filosofia. Mas como construir essa fertilidade como prática pedagógica, como traçar um caminho para a emancipação crítica? A realidade que atravessava todos os meus conhecimentos teóricos, colocava-me def rente para pessoas fragmentadas, e que, apesar de estarem na escola, em muitos casos, não viam muito sentido em estar ali, a não ser por eventuais fins profissionais. Em um Conselho de Classe, chegou-se a comentar o caso de um aluno por três anos reprovado na 3ª série, que, em conversa com um professor mais próximo, havia confessado que não passava para não perder a merenda escolar. Posteriormente acertou-se com o aluno que, no ano seguinte a sua aprovação, a escola continuaria a servir-lhe a merenda, para que ele desistisse da auto-reprovação. A verdade é que tudo isso acabou por me dar a consciência de que não haveria como trabalhar com pessoas em cacos, como se elas estivessem inteiras. Era preciso utilizar a Filosofia em um nível quase alingüístico para juntá-las, humanizá-las, à medida que a linguagem fosse sendo aos poucos inserida como instrumento de reflexão. Dei até um nome para esta metodologia: "Filosofar a palo seco" (em referência à poesia do João Cabral). Assim, ora estimulava debates sobre temas cotidianos, para através deles ascender a questões éticas e políticas, ora escutava músicas para o mesmo fim, ora passava filmes etc. Havia também uma demanda afetiva que não poderia ser desconsiderada. Era importante tocar, escutar com atenção não só na aula, entrar sorrindo em sala e, acima tudo, aumentar a auto-estima do pessoal. Dizer para eles aceitarem o desafio de crescer, que eles podiam sonhar com uma faculdade, que eles eram muito melhores do que pensavam que eram. Tudo isso foi aos poucos me fazendo ser aceito por eles como uma pessoa confiável, e gradativamente aumentando o interesse e o rendimento das turmas. Os critérios de avaliação eram pautados pelo que cada um construía singularmente, no intuito de que o crescimento não fosse bloqueado por um eventual sentimento de fracasso.

No início deste período, um dia, ia eu no ônibus da Casa da Moeda ainda sem saber o que fazer naquele dia. Não havia conseguido tirar aquele tempinho de depois do almoço para preparar a aula, e confesso que estava agoniado. Pensei até em ir para casa, faltar, inventar uma doença, para fugir do problema. Mas aí lembrava que aquelas pessoas estariam lá me esperando, com aqueles olhares cansados do trabalho, que talvez muitas delas poderiam ter deixado filhos doentes em casa, ou mesmo sem jantar, para poder estar ali, e então me vinha uma enorme força interior... força estranha, como diria Caetano. Como é difícil e dolorosa a tarefa de se reinventar... Era preciso criar um caminho, abrir uma veia na floresta fechada, para respirar. Retornar seria por demais sufocante, e o ônibus já estava chegando... Comecei a avaliar que a idéia de emancipação não seria atingida possibilitando-lhes uma visão sobre um objeto especial, pois o que precisa ser especial é a visão, não a coisa. Fui indo junto com ônibus, balançando, lembrando de filmes, textos, poesias, e aí me veio uma idéia... dessas que a gente nem sabe ao certo se fomos nós mesmos que tivemos, tamanha a clareza com que aparecem.

Entrei na sala, brinquei com um dos alunos, e quando me virei para a turma, vi aqueles alhares. Veio-me uma satisfação muito grande de não ter fugido deles. Alardeei para os alunos: "Hoje eu tô danado!!! Tô com uma vontade de dar aula pra vocês, que é capaz de cair um raio aqui!!!" Todo mundo riu e uma voz gaiata, forjando um desânimo, soltou: "Hoje a parada vai ser sinistra...". Como dizem os nordestinos: "garrei" do apagador e dei na mão do aluno mais falador da sala.
- Me descreve esse objeto... - ele, meio assustado, falou:
- Isso é um apagador.
- Não, você me falou o nome. Eu não quero o nome, quero que você descreva... dizer como ele é... - ele, meio atordoado (e eu fiz isso de propósito, para dar um sossega-leão nele... rs), começou a girar o apagador, e dizer que era de madeira de uma lado, que tinha um feltro do outro, era retangular etc. Falei para ele:
- Já tá bom! Bela descrição, fulano... (já esqueci seu nome). Palmas para ele, né gente... - E o gaiato agradecia como se fosse um Odorico Paraguaçu... rs. Pensei comigo: "É um cara-de-pau... rsrs". Chamei a atenção da turma para voltarmos ao ponto e perguntei:
- O que ele fez para descrever o objeto?
- Ah, professor, ele ficou mexendo e virando...
- Pois é, mas porque ele fez isso? Aliás qualquer um de nós faria o mesmo...
- Pra ver o apagador melhor.
- Isso aí, concordo. Mas porque a gente vê melhor quando fica virando, girando?
- Porque a gente precisa ver de todos os lados...
- Beleza, agora o negócio tá começando a ficar bom... e isso é só com o apagador?!
- Não, com qualquer coisa...
- Legal, mas com qualquer coisa mesmo? Mesmo que não seja um objeto? (Silêncio...) - emendei:
- E se for uma idéia, um sentimento, um valor... é do mesmo jeito? - Afirmações tímidas ou apenas confirmações com a cabeça.
- Pra gente pensar estas coisas que a gente não consegue pegar nem ver, pode ser com um só ponto de vista, ou tem que girar?
- Tem que girar! - falou o atentado... rs. Vibrei então:
- Então agora nós descobrimos a coisa mais importante da Filosofia. É preciso não parar em um só ponto de vista. Nós precisamos estar sempre girando as coisas com o pensamento para conhecê-las melhor... Mas isso não é fácil. Sabem por quê? (silêncio...) Porque a gente sempre acha que está certo... porque a gente sempre se acha o último biscoito do pacote (risos). É ou não é?!!! - e continuei:
- Querem ver uma coisa? - Peguei o pagador e, esticando-o com a mão, posicionei-o entre dois alunos. Perguntei:
- Fulaninha, a partir apenas do seu ponto de vista, o que é isso? - e ela respondeu:
- Um pedaço de madeira... é o que eu tô vendo...
- E você, Cicraninho?
- Eu tô vendo um pedaço de pano, feltro, sei lá... - e, após a resposta, virei-me para a turma e perguntei:
- Gente, eles estão dizendo alguma coisa errada?
- Não!!! - e uma e outra voz - Só o que estão vendo...
- Pois é, mas já imaginaram se eles começassem a discutir indefinidamente afirmando que o outro estava maluco e defendendo, cada um, o seu ponto de vista?E falou o atentado:
- Ah, professor, ia dá polícia e o negócio não ia resolver... - risos gerais, inclusive meu, e retomei:
- Pois é, vou-lhes dizer uma coisa, isso acontece com todos nós, o tempo todo, e a gente não percebe... Pensa que tá com a verdade do lado, mas só está se iludindo... À esta ilusão em forma de teimosia, de quem pensa que já sabe de tudo, a Filosofia dá o nome Senso Comum. O Senso Comum engessa o nosso pensamento porque, "por que diabos vai refletir uma pessoa que pensa que já sabe de tudo"?

E então fui daí organizando os conceitos: Senso Comum = Ponto de Vista (opinião irrefletida), Senso Crítico = Perspectiva (reflexão filosófica), e o negócio foi acontecendo naturalmente, de uma forma muito gratificante. Na aula seguinte, passei para eles o filme"Sociedade dos Poetas Mortos", que é muito legal e tem uma parte bem comovente e próxima do nosso debate. Aquela do final, quando um dos alunos sobe na mesa para, na despedida do professor, demonstrar-lhe que havia mudado seu olhar sobre o mundo. Aliás, como o filme conta uma estória de convivência entre um professor e seus alunos, percebi que o contexto acabou sendo duplamente importante para nós, possibilitando uma aproximação mais efetiva. O tal aluno atentado passou o resto do ano me chamando de "Oh! Capitan, my capitan!"...rsrs. Fizemos um trabalho em grupo, para produção de um texto em conjunto, e a avaliação também foi muito boa...

Sempre dou esta aula no início do ano letivo, como uma espécie de preparação e potencialização do que vem posteriormente. A Filosofia não é um conteúdo. Como disse Merleau-Ponty, ela é um reaprender aver, e se não tratarmos antes do que impossibilita esta reaprendizagem contínua, ou seja, dos dogmatismos do Senso Comum, certamente não haverá um bom aproveitamento. Acontece que em uma de minhas turmas deste ano, um fato bem interessante ocorreu, e eu vou-lhes contar. Dava eu a tal aula para uma turma, quase toda de jovens, todos sentados ao fundo da sala, como numa atitude de auto-defesa... rs. Digo quase toda, porque isolado na frente, tinha um homem já adulto, dos seus 40 e poucos anos, chamado Ubirajara. A aula foi bem legal, mas o Ubirajara, mantinha-se com aquele olhar fixo, quase hipinotizado, que professor nenhum sabe identificar se é de dificuldade, renúncia, cansaço, atenção etc. Com o tempo a expressão dele foi ganhando olhos levemente arregalados, com um jeito assustado, que aumentou a minha curiosidade. Mas não lhe fiz nenhuma pergunta para não expô-lo. Fui levando até o final da aula. Peguei o diário para fazer a chamada e, enquanto chamava os nomes, pude perceber que o Ubirajara folheava a Bíblia, como se catasse algo que havia perdido. Continuava a chamada, mas com os olhos nele... páginas para um lado, páginas para o outro, bem uns 3 minutos, sem parar. Os alunos foram todos embora, e ele lá. Que imagem indefinível era aquela... Pensava comigo que, numa aula daquela, na qual eu havia falado da importância da dúvida e do questionamento de nossas verdades, ele parecia meio perdido... Foi tudo muito rápido, mas, por um momento, fiquei pensando que talvez pudesse ter pego um pouco pesado na dose do princípio cético da Filosofia, enunciado por Sócrates em seu "Só sei que nada sei". Por outro lado, avaliava que, em muitos momentos na vida, precisamos nos perder um pouco mesmo, para nos acharmos mais a frente, dessa vez mais inteiros. E que talvez eu estivesse ali realizando o meu papel, ainda que isso causasse algum sofrimento ao Ubirajara. Foi um momento eterno, um impasse, que suspendeu, ao mesmo tempo, as minhas crenças como professor e, as dele como homem religioso. Isto, sem falar que eu não havia ainda também descartado a possibilidade de ser um delírio aquilo tudo que passava pela minha cabeça... Mas ele continuava lá, e eu fingindo que arrumava as minhas coisas. Resolvi arriscar:
- Ubirajara, você sabia que existem muitos filósofos cristãos? - e ele virando-se para mim, e fechando a Bíblia...
- É mesmo?!
- É, e alguns deles eu gosto bastante... Tem o Santo Agostinho, a SantaTereza D'avila... Mais próximos dos nossos tempos tem o Kierkegaard, e vivos, andando por aí, têm o Leonardo Boff e Frei Betto, que são brasileiros. Você os conhece?
- Não...
- Mas esses caras são bem legais porque eles aceitam o desafio de pensar sobre a própria religiosidade. Eles gostam de pensar o mundo através da perspectiva cristã. Qual dos ensinamentos de Cristo você acha mais bonito? - pausa dele...
- Acho que é o de respeitar as pessoas...
- Pois é, também acho... Eu não sou cristão não, sabe, mas eu também acho isso essencial... Mas por que você acha que Cristo dava importância a isso?
- Ah, acho que ele queria que as pessoas vivessem em paz, sem violência, né?
- Pois é, isso é difícil né, Ubirajara? Hoje em dia então...
- Pô, hoje em dia tem muita gente perdida, professor, que não conhece a palavra do Senhor...
- Pois você tocou num ponto importante. Será que basta conhecer a palavra, para elas mudarem?
- Sei lá, acho que não...
- O que você acha que falta?- silêncio hesitante...
- Sabe, como eu te disse, eu não sou cristão, mas tem uma coisa no cristianismo que eu gosto muito. Aquele princípio do "Amai-vos uns aos outros". É uma maneira de se abrir para o outro, ao invés de se fechar, que eu acho muito bonita. Só que amar é muito difícil, né?... Porque, quando a gente ama, a gente mais se dá, do que espera receber. E isso é muito difícil... Tem até um poeta chamado Drumond que escreveu um livro bem interessante sobre isso. Chama-se "Amar se aprende amando". Não é legal?! Pois é, gosto de pensar que Cristo queria nos fazer aprender a amar... O que você acha?
- É também acho...
- Olha só, Ubirajara... nós estamos pensando filosoficamente sobre a nossa espiritualidade, ao invés de só acreditar nas coisas sem tentar entendê-las... É isso que a Filosofia propõe, sabe, e isso vale até para as religiões. Quando a gente pensa uma coisa, a gente se aproxima dela...

Já havia passado do tempo... eram bem umas 22:50h, e o funcionário que fecha as salas nos esperava impacientemente. Apercebendo disso, ele se virou para mim e disse:
- É, professor, tenho que ir... mas é muito bom que a gente tenha uma matéria dessa aqui... - e respondi:
- Falou então Ubirajara... a gente se vê na próxima aula.

Sinceramente, não sei se ele falou aquilo de coração... Talvez tenha sido uma fuga, uma estratégia de auto-defesa, ou até mesmo uma atitude de carinho pela atenção que lhe dispensei... Mas, ser educador é um pouco isso... A gente nunca sabe se atingiu ou não o objetivo que queria... A natureza humana é sorrateira, nunca se desvenda por inteiro, porque é sempre muito maior que nós... mas talvez seja isso o mais apaixonante.

Um comentário:

Alexandre de Moraes disse...

Olá Sérgio. Sou amigo da Juliana e professor de História. Ela me chamou a atenção para seu texto. Achei muito bom. Amanhã vou explicar a eles como fazer uma pesquisa, pensar as hipóteses, tentar criar algo novo, colocar-se como indivíduos pensantes que não precisam reproduzir idéias de outros para fazer História. Vou pedir sua autorização pra usar o exemplo do apagador. rs. Quero estimulá-los a pensar as coisas por outros ângulos porque a vida não pode ser encarada por um caminho único, linear, progressivo. Acho que é por aí: despertando olhares plurais é que cumprimos nosso papel como educadores, e não simplesmente ensinando a pensar os cânones históricos ou filosóficos estabelecidos. O que define o homem é seu poder criador, o que faz ele se diferenciar dos animais, os cínicos perfeitos (como Nietzsche sugere).

Obrigado pela idéia.

Abraços,
Alexandre.