quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

A Árvore do Morro e o Asfalto

No final de semana retrasado, sábado, fui, como se diz no linguajar do samba, "em Mangueira"... E, apesar de uma semana agitada das mesmas mesmices, guardei no meu coração e na minha memória as intensidades dessa visita para dividir com vocês num momento sem urgências menores.

É que, para mim, falar de Mangueira é falar de uma tatuagem do espírito... é lembrar de minha mãe ligando para minha vó durante o desfile em homenagem ao Braguinha, chorando uma emoção inenarrável... é lembrar deste samba-enredo lindo que traz em si a arrebatadora saudade dos carnavais que o tempo levou: "Laura... que não sai da minha mente... morena, a saudade mata a gente..." (que passado lindo, né Júlio? Passado-lamento)... é lembrar do pito que Cartola dá na filha, em O MUNDO É UM MOINHO, e que pito... é lembrar de Nelson Cavaquinho e sentir com ele a solidão de LUZ NEGRA... é lembrar que ainda hoje o Nelson Sargento canta seus sambas por aí, desfolhando as FOLHAS SECAS do outro Nelson, pra quem quiser vê-lo e ouvi-lo. Bom contrato com o tempo o dele...

Bem, apesar de ser um mangueirense assim, que teve a liberdade de não ter como amar outra escola com a mesma intensidade (sabe como é... choro de mãe é sempre muito comovente... rs), nunca havia pisado no PALÁCIO DO SAMBA até esse sábado. Mas a oportunidade veio como tinha de vir, em forma de convite, e me fez sentir com toda força as frases daquele samba do João Gilberto: "o samba mandou me chamar...". Estava num churrasco de amigos novos, amizade, que como toda boa, veio daonde não se espera. Um grupo de pais da escola de meu filho que, por afinidade latente, começou a se reunir para promover encontros entre as crianças, e que agora se reune também pela necessidade de se encontrar. Lá pelas tantas, um dos casais amigos lançou o convite: "Estamos essa noite indo para a Mangueira... e aí, vamos?" O aceite foi imediato e o único trabalho que tivemos foi o de ligar para os avós para checar se eles poderíam ficar com o João á noite. E, como macaco dificilmente recusa banana, minha sogra aceitou a proposta como um presente, assumindo com um sorriso a função moderna dos avós...rs.

Através do Samba, a cidade fala, e se insinua em éticas e estéticas que produzem a cultura popular como um diamante bruto, único. É preciso deixar os julgamentos do bom senso de lado para sentir com toda a força a idéia de Spinoza de que a realidade, dos mundos possíveis, é o mais perfeito, o mais potente. Assim que chegamos, paramos o carro, ao lado do viaduto, e logo fomos aboradados por um dos guardadores, que, para cobrar R$ 5,00 pela vaga, falava quase cantando, com uma malandragem irresistível. Malandragem que é uma ética de defesa dos excluídos, ginga antropológica de quem desvia com elegância dos revéses da vida. Perguntei rindo: "Mas tu vai tá aqui no final, quando a gente for embora?" E veio a resposta: "É craro dotô! Aqui o sinhô é vip...". Fomos então, sem nenhuma confiança... rsrs, para debaixo do viaduto, onde várias barraquinhas de madeira, todas verde-e-rosa (com hífen fica mais bonito), vendem bebidas e mocotós-amigos, para quem quer se "forrar" antes de entrar. Sabe como é... lá dentro o preço é salgado, e muita gente nem entra, só fica ali mesmo, respirando o ar do samba. E, por falar em respirar, ali, o cheiro mais marcante era o de uréia. Paramos em uma daquelas mesinhas de metal para fazer um tempinho, e mais uma mistura de ética e estética nos surpreendeu. Na barraquinha em que paramos tinha um cartazinho escrito assim:

"Bebeu aqui,
mija aqui.
Bebeu lá,
mija lá."

Pensei comigo: "Agora entendi o cheirinho...rsrs". Rimos muito com o sútil e poético recadinho... Debaixo de todo aquele concreto, e com cada barraca tocando a sua música, cheiros, sons e gentes se misturavam num ambiente inundado de densidade. Ao lado da nossa, o dono de outra barraca que estava fechada, resolveu vestir de verde-e-rosa o capitalismo, e escreveu em suas paredes verdes, com tinta rosa, o recado de "vende-se" com o telefone em baixo. Aliás, o capitalismo é mesmo um vírus poderoso. Era ele que trazia em vans fechadas com seus ares condicionados, bem menos densos que os de debaixo do viaduto, centenas de turistas que entravam na quadra com olhos arregalados. E, de fato, não só o dos gringos, mais todos os olhos pareciam compreender que qualquer campo de visão era pequeno demais para tanta afeto. Todos os sentidos se dilatavam para tentar, em vão, dar conta daquele acontecimento inteiro. A infinitude daquelas trocas desnudava a finitude da nossa humana sensorialidade. Mas, a cena mais bonita ainda estava por acontecer. Duas barraquinhas mais à frente, chamou-me a atenção o fato de que, numa dessas máquinas que se coloca fichas para selecionar músicas, tocava WE ARE THE WORLD. Achei esquisito e estiquei o pescoço para ver o que rolava por lá. A imagem não poderia ser mais surreal. Um sujeito com uma camisa do Salgueiro, em frente à quadra da Mangueira, acompanhando com um pandeiro nas mãos e um riso largo nos lábios, a música do Michael Jackson e do Lionel Ritchie , enquanto era acompanhado pelo samba no pé de uma mulata que se requebrava da cabeça aos pés. Gente... que imagem... cá pra nós, como diria Caymmi, "luxo só"... rsrsrs. Os dois evoluíam tão plenos que, se Michael Jackson visse aquilo, seria capaz de querer voltar a escurecer... rsrsrs. Que Show!

Ficamos ali ainda durante um tempo, que obviamente não sei precisar quanto, pois quando os sentidos se dilatam dessa maneira o tempo perde o seu viés consciente, cronológico, para abrir a sua janelinha eterna. Do lado de fora, onde os simulacros se insinuavam sensualmente, recordo-me apenas de mais um detalhe curioso.

De frente para a quadra há uma guarita da PM, onde os policiais fitavam a multidão com olhar preguiçoso, garantindo-se em uma segurança que não era bem eles que proviam. É que estávamos em uma região de fronteira, como as muitas que a cidade do Rio produz, e que fazem risíveis, pricipalmente em realidades tão desiguais como a nossa, as leis dos homens do distante parlamento. A mesma cidade que confronta filhos que se desconhecem em uma guerra que é de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém, vez por outra, também ensaia pazes dignas de uma tranqüilidade bocejante e de uma alegria efuziante. Essa alegria e essa tranqüilidade tinham o nome de uma mesma paixão: o Samba. A raiz cultural daquela frondosa mangueira penetrara tão profundamente os espíritos, que produzia uma paz mais poderosa que qualquer guerra. Silêncio frio de afastamentos, alegria quente de encontros... e a cidade exibia suas guerras e suas pazes, para olhos embriagados de imagens intrasitivas, que afrontavam qualquer racionalidade, e perfaziam um ambiente de intensidade similar a daquele excelente filme brasileiro, AMARELO MANGA (nome bem sugestivo para o local...).

Continuava observando o policial, quando pude perceber que, do mesmo poste de iluminação em que ele se encostava, mais acima, saíam dezenas de fios irregulares, os tradicionais gatos, que iluminavam e esquentavam as chapas das barraquinhas. Que foto interessante daria, não? A cidade e seus contratos que ninguém assinou...

A esta altura, já estávamos em frente à quadra na qual entraríamos pelo portão de convidados (muito chique não é não?). Pois é, entramos e fomos subindo a escadaria da entrada. A cada degrau, o interior do PALÁCIO ia aparecendo com mais inteireza e oferecendo com mais intensidade seus verdes e rosas. Encaminhamo-nos para a mesa onde ficaríamos, e, mesmo nesse caminho, já dava para perceber uma mudança considerável no ambiente. Não mais aquela densidade intransitiva de contrastes inconsiliáveis do lado de fora, mas uma densidade com uma outra riqueza, a de uma con-densação de tempos. O PALÁCIO DO SAMBA é tão impregnado de passado, que imediatamente lembrei-me do Júlio e do papo que batemos nos primeiros dias do ano. Cada camarote tem o nome de uma personalidade póstuma da Mangueira: fundadores, sambistas, presidentes etc. Para todos os lados, nomes de pessoas que fizeram parte da história da escola, lembranças de antigos carnavais... A tradição do samba é o viés pelo qual o antigo e o novo tornam-se ali dimensões complementares de um mesmo acontecimento. Tradição que impregna de uma relação ético-estética singularíssima, não só a Mangueira, mas todo o mundo do samba. Regras de convívio, jeitos de se falar, de agir e pensar bem próprios. Coisas de quem sente a arte, não só como expressão de beleza, mas de vida. Aliás é essa a visceralidade da arte popular: entre arte e vida, já não se sabe mais quem imita quem. Talvez nem seja TRADIÇÃO o melhor nome para definir o que dá essa liga, afinal o que é tradicional apresenta-se muitas vezes como uma obrigação exterior as pessoas. LEGADO fica melhor, porque é por dentro que se constrói.

Quando chegamos à mesa, a quadra ainda não estava totalmente cheia, e um grupo de músicos tocava sambas de raiz para o pessoal. Na galera que se deliciava, via-se gente de todo tipo, de turistas a pessoas da comunidade, de jovens a idosos, de passistas e desajeitados, brancos, negros, mulatos, todos em uníssono, sambando com as mãos para o alto, como numa reza profana. O rapaz do grupo que fazia a 1ª voz, com os braços debruçados sobre o tam-tam, parecia estar em transe, cantando os sambas sempre com os olhos fechados. De repente, uma mulata, dessas, como se diz, tipo exportação, sai de trás do grupo, com um vestido todo de lantejolas lilás, totalmente colado a seu corpo, por sinal, mais sinuoso que a Estrada de Santos, dando um verdadeiro show. Durante alguns minutos ela foi o acontecimento. Alguns turistas olhavam os movimentos de seu corpo totalmente extasiados. Era de se rir com os queixos caídos...

A coisa começava a esquentar quando olhei para o camarote principal, e lá estava ele, Chico Buarque de Holanda, com uma blusa rosa que contrastava com sua presença tímida. Mostrei-o para minha mulher, que imediatamente obrigou-me a chegar mais perto para vê-lo com mais detalhes. Parecia uma adolescente... (e eu me mordendo... rs). Ela sempre se gaba de que ele fez um samba pra ela, A RITA, e eu sempre implico dizendo que ele não a quis mais porque, como diz na música, ela levou seu sorriso e seu assunto. Implicâncias de casal, temperos... rs. Voltamos para a mesa, enquanto, no microfone, o Chico era anunciado para o povo, como o homenageado da noite. A quadra fez uma longa ovação, enquanto ele distribuia mais sorrisos tímidos... Ir à Mangueira já é especial, entrar pela porta de convidados, mais ainda, e ainda no dia em que o Chico é homenageado... cá pra nós, agora vocês estão entendo porque esse texto não acaba... rs. Ele merece...

O cavaco chamou e a Bateria começou a se arrumar. O samba que se cantava fazia arrepiar qualquer frigidez: "MANGUEIRA TÚ ÉS O AR QUE EU RESPIRO, O SONHO QUE AQUECE O MEU CORAÇÃO....". Mesmo agora, emociona-me recordar. Nem milhares de palavras expressariam a verdadeira tsunami de afetos que se produzia nesse momento de espera. Os ritmistas pegavam seus instrumentos, e, mesmo os mais pesados, pareciam penas diante da paixão que os sustentava. Alguns traziam marcas de sangue em seu couro, manchas do passado que, o tempo sábio, desbotou... dando um tom rosado ao que é vermelho por natureza. O mestre de bateria gritava quase rugindo com os ritmistas que acatavam imediatamente suas ordens. O negócio iria ficar sério... a bateria do Surdo sem resposta já estava pronta, e os batuques da mãe África falariam por si...

E eles chegaram estrondosos... (pausa para imaginar: ..............). Um menino de, no máximo, uns 12 anos, e uma voz de 40, puxava o samba da Mangueira do Amanhã: uma homenagem a Monteiro Lobato que foi enredo de um carnaval passado da escola. Fiquei imaginando o que representava para aquele menino puxar aquele samba, naquela quadra, com aquela Bateria. Desesti de imaginar e fiquei com seu olhar transbordante... Como na música do Milton: "HÁ QUE SE CUIDAR DO BROTO..." e a mangueira demonstrava saber distribuir sua seiva. Olhei para o Chico, e percebi que ele cantava o samba na ponta da língua, enquanto fitava enbevecido aquele menino. Meus olhos se encheram de lágrimas... quanta força, quanta vida, quanta alegria. Tentei recolhê-las, inocuamente... Meus olhos riachados pareciam anunciar o enredo do Carnaval de 2006, cujo samba seria cantado em seguida: O Velho-Chico... isso mesmo, uma homenagem ao Rio São Francisco, tão falado em nossas conversas do ano passado... No centro da Quadra, DELEGADO, negro magrísimo, figura antológica da Mangueira, apresentava a ala das baianas com samba-no-pé e orgulho indisfarçável. Olhei para o nosso grupo de amigos, todos cantando e sambando, nossas mulheres se acabando, que me senti um pouco esquisito parado. Resolvi então, além do espírito, entregar também meu corpo ao samba, distinção ontológica que perde completamente o sentido (se é que há um...) diante da profana religiosidade de Mangueira. E aí eu não me lembro de mais nada... Só que saímos de lá umas duas horas da manhã, e que, quando chegamos no carro, como era de se esperar, não havia nem sinal do guardador... rsrsrs. Certo como dois e dois...rsrsrs.

Dentro do carro, o refrão do Samba ainda ecoava no ouvido:

"A CARRANCA NA MANGUEIRA VAI PASSAR
MINHA BANDEIRA TEM QUE RESPEITAR
NINGUÉM DESBANCA MINHA EMBARCAÇÃO
PORQUE O SAMBA É MINHA ORAÇÃO."

Riso verde-e-rosa,
Sérgio

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