segunda-feira, 27 de junho de 2005

DO OUTRO LADO DO RIO

Ontem vi com atraso um filme que, com muito pesar, não consegui ver no cinema: "Diários de Motocicleta". Tendo visto agora na telinha, fico imaginando a intensa verdade de que desfrutaram os que puderam vê-lo na telona, com toda aquela matéria sonora e visual a produzir um acréscimo das impressões e sensações.

Mas, com certeza, há no filme muito mais do que impressões sonoras e visuais. Há uma profunda descoberta dos aspectos díspares da humanidade, onde ela mais desanda do que anda. Acredito que seja nesse ponto que o filme constrói a sua grandeza.

A viagem tinha em sua concepção uma ansiedade da experiência do novo, e uma vontade de tornar vivos conhecimentos vazios. Mas toda estrada é sempre muito maior do que quem a percorre, e, para os dois viajantes, ela foi-se revelando, não por suas diferenças, mas por suas repetições. As várias faces da mesma injustiça, os vários jeitos da mesma desigualdade... Aos poucos os olhos vão sendo desfocados da realidade, e as cores do novo vão dando lugar ao determinismo do preto-e-branco. Num jogo de luzes, que produz sempre mais sombras do que iluminação, vai-se vendo diferentes atores, sempre na mesma peça, sempre no mesmo texto. Como diria Nelson Cavaquinho: "A luz negra de um destino cruel ilumina um teatro sem cor..." Um jogo de variáveis superficiais que aponta sempre para a mesma constante, tranforma a ansiedade do novo, em mal-estar do mesmo.

No caminho de Ernesto, na inconclusão da estrada, a humanidade vai se mostrando, não como um conjunto de traços comuns a uma espécie, mas pelos limites que ela não ultrapassa. Um ar que não se renova, irrespirável, impregna de asma, não só o jovem Chê, mas toda a humanidade. "Um pouco de possível, senão eu sufoco...". Essa frase de Foucault (ou atribuída a ele por Deleuze), sente-se na pele. Essa linha sufocante (Blanchot a chama linha do Fora), que não se ultrapassa sem sonho, é o começo de seu desafio, de sua utopia. E, de fato, uma utopia é sempre um grito de liberdade que se dá no meio de um "deserto devassado de sol". Diria João Cabral: "a palo seco", como o pássaro araponga.

E, numa das cenas mais bonitas do filme, essa linha é o Rio Amazonas. No dia de seu aniversário, sugestivo dia para um ritual de passagem, nosso Ernesto estava em um vilarejo onde os leprosos eram mantidos separados na outra margem. Em meio às comemorações, ele vai para a beira do rio e lá fica... olhos postos no além-rio, na outra margem, em uma conversação interna. Quando seu parceiro chega, ele diz:

- Não posso comemorar meu aniversário só aqui... tenho que ir pra lá!.

- Mas, não há barcos a essa hora, Fuser! - adverte seu parceiro.

- Então vou à nado.

- Você tá maluco, esse rio vai te matar!

Não era mais possível, não haver possíveis. Era necessário dobrar a linha do Fora, torná-la respirável. Pior seria continuar afogado fora do rio... e ele foi. A radicalidade de sua utopia mostrava-o a vida em uma dimensão impessoal tão intensa, que nem o medo da morte, era-lhe maior que desejo de ultrapassar aquela linha. "Navegar é preciso, viver não é preciso...".

Não agüentei, chorei um choro sufocado, desses que não se consegue interromper, tamanha a força da verdade que ele converte em lágrimas.

No final do filme, um fundo negro, com letras brancas subindo, e aquela linda música...

Al Otro Lado del Río
(Jorge Drexler)

Clavo mi remo en el agua
Llevo tu remo en el mío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

El día le irá pudiendo poco a poco al frío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

Sobre todo creo que no todo está perdido
Tanta lágrima, tanta lágrima y yo, soy un vaso vacío

Oigo una voz que me llama casi un suspiro
Rema, rema, rema-a.
Rema, rema, rema-a

En esta orilla del mundo lo que no es presa es baldío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

Yo muy serio voy remando muy adentro sonrío
Creo que he visto una luz al otro lado del río

Sobre todo creo que no todo está perdido
Tanta lágrima, tanta lágrima y yo, soy un vaso vacío

Oigo una voz que me llama casi un suspiro
Rema, rema, rema-a.
Rema, rema, rema-a

Clavo mi remo en el agua
Llevo tu remo en el mío
Creo que he visto una luz al otro lado del río


Riso,
Sérgio.

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